A transição para o digital na psicologia clínica é uma das transformações mais profundas e inevitáveis do nosso tempo, mas a resistência que ainda se observa entre tantos profissionais da área é algo que intriga – e preocupa.
É compreensível o apego ao modelo tradicional. O consultório físico sempre foi o cenário quase sagrado da escuta, o espaço que delimitava o setting, o lugar seguro onde o vínculo terapêutico ganhava corpo. Era ali que se criava o “encontro” na sua forma mais tangível. Mas o mundo mudou. E o que antes era exceção, como uma sessão online, tornou-se prática amplamente aceita – às vezes, até preferida.
O curioso é que, mesmo após um período pandêmico que escancarou a eficácia da psicoterapia online, a resistência ainda persiste. Muitos profissionais falam da perda da “presença”, da dificuldade de captar nuances, do receio de que o setting se desfaça ao atravessar a tela. Mas será mesmo que essas questões dizem mais sobre o paciente… ou sobre inseguranças que ainda não foram plenamente elaboradas?
Não é raro ouvir afirmações como: “no online, não dá para fazer análise de verdade”, ou “isso funciona só para TCC”. Como se a eficácia da prática clínica estivesse mais no lugar do que na escuta, mais na poltrona do que no olhar atento. Há um saudosismo disfarçado de crítica técnica que, na verdade, pode estar mascarando uma dificuldade maior: a de muitos profissionais se reinventarem.
Esse medo do digital, muitas vezes, revela um desconforto em lidar com o desconhecido, em aprender novas ferramentas, em expor a prática clínica a um novo formato onde a autoridade simbólica da sala física se dilui. No fundo, trata-se de uma questão de controle. E o digital, com seus ruídos, travamentos e ambientes híbridos, desafia justamente isso.
Por outro lado, é inegável que o mercado da psicologia digitalizou rápido demais. Plataformas de atendimento, marketing agressivo, aplicativos que “vendem” escuta como se fosse delivery... Tudo isso gera uma sensação de ameaça à identidade do psicólogo clínico. E é legítimo se sentir desconfortável diante disso. Mas será que a saída é resistir... ou ressignificar?
O digital, bem utilizado, não desumaniza o processo terapêutico. Pode, inclusive, ampliar o acesso, flexibilizar horários, tornar o cuidado mais inclusivo. A clínica online pode sim preservar (e até aprofundar) o setting, desde que haja disposição para ressignificá-lo. A resistência, nesse caso, parece dizer mais sobre o medo de perder um modelo idealizado do que sobre riscos reais à qualidade do vínculo terapêutico.
Talvez não seja o setting que precise mudar. Talvez o convite esteja em como se posicionar frente a uma nova forma de fazer clínica – com ética, escuta e abertura para o presente.